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Os cuidadores da saúde em São Pedro de Uberabinha

qui, 24 de abril de 2014 00:10

Abertura Histórias de Uberlândia
Numa bela manhã de quarta feira, dia 9 de junho do Ano de Nosso Senhor de 1.892, Américo Saint-Clair apresentou requerimento à Câmara da Intendência Municipal de São Pedro de Uberabinha, solicitando um atestado que confirmasse ter ele, na cidade, uma “pharmacia a disposição do público, mantendo-a sortida de medicamentos”, e que no “desempenho de sua profissão porta-se com escrúpulo, acceio e caprixo”. Também indagava sobre reclamações de que ele, “por descuido, erro ou má fé de sua parte, durante três annos que estabelecido, tenha dado causa a algum envenenamento ou de qualquer maneira comprometido a saúde de alguém”. Por fim, perguntava se “além de sua pharmacia não tem ainda nesta Cidade mais uma dirigida pelo pharmacêutico licenciado Alferes Miguel Jacyntho de Mello”. A argumentação de Américo Saint-Clair refutava supostas acusações de erro, má-fé e envenenamento, e o requerimento sugere ter havido um episódio em que sua prática e seu prestígio eram questionados. Esse requerimento mostrava duas interessantes facetas da organização do sistema de saúde no recém-emancipado município.

Os farmacêuticos práticos buscavam legitimar seu ofício apoiando-se nos atestados da Câmara. Embora a autorização da Câmara para abertura ou reconhecimento de farmácias e para o exercício da profissão de farmacêutico tivessem que ser precedidos de parecer técnico sobre a capacidade do farmacêutico, referendado por uma “Junta de Higiene” montada na própria cidade, quando possível, o procedimento nem sempre era respeitado. Várias vezes a chancela da Câmara não se apoiava em pareceres técnicos, mas sim em outro tipo de avaliação. Nos anos de 1892 e 1893, por exemplo, todas as autorizações apresentadas foram concedidas, sendo que algumas não receberam o parecer. Foi o caso de José Teixeira de Sant’Anna, prefeito da cidade entre 1901 e 1903, que requereu à Câmara, em 1892, “attestado de sua conducta e capacidade intelectual para o exercício de pharmaceutico”, sendo prontamente aprovado, “dispensado o parecer da comissão sobre o requerimento”. Também Francisco Firmino Monteiro, solicitou autorização para abertura de uma farmácia e obteve o atestado lavrado na própria seção onde foi apreciado seu requerimento. Em abril de 1893 foi a vez de Antônio Maximiano Pinto requerer à Câmara atestado de farmacêutico prático, o que lhe foi atendido.

E houve, entre eles, e também com os médicos, práticos ou de formação, conflitos acerca do direito de se ter ou não farmácia em Uberabinha, de poder atuar ou não como farmacêutico prático. Um processo criminal rolado na comarca de Uberabinha na segunda metade do ano de 1914 retrata essas disputas. Rodrigues da Cunha, farmacêutico e Agente Executivo de Uberabinha, ofereceu denúncias ao Secretário do Interior do Estado de Minas Gerais, Américo Lopes, contra o médico prático e capitão José Marra de Castro por prática de curandeirismo e contra a parteira Maria dos Santos Couto, acusando-a de imperícia.

Em 18 de outubro do mesmo ano, o Jornal Paranayba, ligado ao Partido Conservador e opositor do Partido Republicano Municipal, do qual Rodrigues da Cunha era o principal líder, colocou-se contra tais acusações argumentando tratar-se de perseguição política, sem, contudo, negar que José Marra exercia ilegalmente o ofício de médico. Ao contrário, o jornal alegava que “grande parte dos habitantes do Municipio, à mingua de recursos, se vale dos conhecimentos praticos das pessoas que, pelas licções da experiencia, adquiriram nocções que as habilitam a ser uteis ao proximo, num lance difficil, quando a necessidade impõe os seus serviços”. À força de respaldar aquela realidade, o jornal citava médicos e farmacêuticos práticos e sem habilitação, tais como o major Bernardo Cupertino, o segundo suplente de delegado de polícia Adolpho da Fonseca e o fazendeiro Manoel Ribeiro de Vasconcellos, todos correligionários do Partido Republicano.

Quanto à Maria dos Santos, o jornal caracterizou-a como “competente parteira”, mas centrou sua defesa no fato de que toda sua família, incluindo ela mesma, era correligionária do partido opositor a Rodrigues da Cunha. No caso de José Marra, o jornal foi mais explícito e citou uma desavença eleitoral com Rodrigues da Cunha, por ocasião da campanha de 1909/1910, em que o primeiro “collocou-se ao lado dos que se bateram pelas candidaturas Hermes–Venceslau”.

A utilização da lei como um recurso de luta político-partidária, nesse caso, ganhou contornos mais claros, quando o jornal tentou transformar as acusações contra a prática ilegal da medicina em evidências de perseguição política, caracterizada no Código Penal de 1890, pelo artigo 179, que condenava “perseguir por motivo religioso ou político”. Baseado em tal alegação, o jornal encaminhou denúncia contra o agente executivo Rodrigues da Cunha.

O processo contra José Marra mostra que as práticas ilegais da medicina e da farmácia não só eram bem toleradas em Uberabinha, como também eram, várias vezes, a única alternativa para a maioria da população do município. O jornal, de forma indireta, expôs a precariedade dos serviços de saúde na cidade e, principalmente, fora dela, afirmando a existência dos curandeiros como alternativa viável e costumeira para os pobres, particularmente nos lugares distantes da cidade.

José Marra era um médico prático, porém sem qualquer licença ou atestado para atuar em Uberabinha. Dominava a manipulação de produtos químicos para o fabrico de remédios e expedia receitas. A sua defesa, feita pelo Jornal Paranayba, sugere que não havia consenso, entre a classe dominante de Uberabinha, sobre os critérios científicos serem suficientes e exclusivos para a formação ou legitimação de um médico. Ao que parece, a prática de longa data da medicina e o assédio das pessoas em busca de recomendações medicamentais seriam fatores que conferiam legitimidade a José Marra e seus pares. De qualquer modo, ele foi inocentado porque não foi comprovado que cobrava pelas consultas, fator considerado suficiente para caracterizar um curandeiro.

Propaganda paga, veiculada em Jornal, pelo pharmaceutico chimico Rodrigues da Cunha

Propaganda paga, veiculada em Jornal, pelo pharmaceutico chimico Rodrigues da Cunha

 

Cidade de Uberabinha, 1914, avenida João Pinheiro. Foto: Divulgação

Cidade de Uberabinha, 1914, avenida João Pinheiro. Foto: Divulgação

 

Início do calçamento da avenida Affonso Penna, Uberabinha, primórdios do século XX.. Foto: Divulgação

Início do calçamento da avenida Affonso Penna, Uberabinha, primórdios do século XX.. Foto: Divulgação

 

Residência característica da classe dominante deUberabinha. Foto: Divulgação

Residência característica da classe dominante deUberabinha. Foto: Divulgação

 

Fórum de Uberabinha, Inaugurado em 1922, na praça da República, atual praça Tubal Vilela. Foto: Divulgação

Fórum de Uberabinha, Inaugurado em 1922, na praça da República, atual praça Tubal Vilela. Foto: Divulgação

 

1917, inauguração do Palácio dos Leões, sede da Câmara Municipal de Uberabinha. Foto: Divulgação

1917, inauguração do Palácio dos Leões, sede da Câmara Municipal de Uberabinha. Foto: Divulgação

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Coimbra Júnior.
(*) Administrador de Empresas, especializado em Finanças. Trabalha atualmente na Via Travel Turismo. Criou a página História de Uberlândia no Facebook.

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