Ficha Técnica – Se inteire sem haver engano
ter, 8 de agosto de 2017 05:24Nasci e cresci numa cidade onde os irmãos Sebastião Naves e Joaquim Naves foram amordaçados e torturados, sem água ou comida, e isolados de qualquer raio de Sol por um crime que não cometeram. Mudei para um município onde um saudoso “João Relojoeiro” foi castigado com a própria vida por um erro que não o pertencia. A injustiça perdura no mês de comemorações ao aniversário de Araguari e Uberlândia, mas não se limita aos ventos daqui. Enquanto Neymar é reverenciado feito um Napoleão e os políticos dizem “sim” para Temer, um jovem de 28 ainda é punido por ser preto e pobre no país da Aquarela do Brasil.
Ary Barroso certamente encheria os olhos ao ver os 50 mil entoarem sua composição para homenagear Neymar no Parque dos Príncipes, em Paris. O futebol tem desses caprichos de alavancar a alma. Da Capital da Luz à Cidade Maravilhosa, onde o Maracanã tricolor se calou de luto pelo filho de Abel Braga. Na Espanha, Rafael Henzel narrou Alan Ruschel envergar a faixa de capitão da Chapecoense contra o Barcelona, ao lado de Neto e Follmann, oito meses depois de fazerem parte da lista de passageiros do último voo da Lamia. Ovacionados. Como Pelé na festa de seus 50 anos no amistoso do Brasil contra o resto do mundo no estádio San Siro, na Itália, em outubro de 1990.
Ver o garoto negro de Três Corações reinar e ser reverenciado por milhões de súditos pelo mundo foi o maior símbolo de representatividade num ambiente onde o racismo impera até hoje. Gente que ainda sofre com quem atravessa a rua amedrontada apenas por sua cor de pele, ou que o coloca nas grades por tratá-lo como ameaça, feito Rafael Braga, catador de material reciclável e único a ser condenado nos protestos de 2013 sem nunca ter participado de uma manifestação, preso novamente por tráfico de drogas quando ia comprar pão para o café da tarde com a mãe.
Quando Neymar aparece nas arquibancadas do estádio com seus ‘parças’, há de se reconhecer o valor da amizade na vida do xodó de Galvão Bueno, que não abre mão dos seus para qualquer novo desafio, com oportunidades para todos que o apoiaram até lá. Assim como muitos, o garoto de Mogi das Cruzes carrega a representação do menino que colecionava sonhos. A discrepância com o dilema da maioria é que ele realizou, ao contrário de muitos que se perdem no caminho longe dos holofotes de um comercial de manteiga.
Sigo acreditando que a cultura, educação e o esporte são os maiores antídotos para combater a amarga injustiça que nos serve à mesa de jantar. No meio de tantos dissabores da desigualdade, perdemos Pérola Negra, o dono da voz que foi reverenciada com a melodia eterna, do largo do Estácio à abertura das Olímpiadas. Tem hora que até o sobrenatural soa injusto para quem lutou por um fiapo de justiça durante toda a carreira. Logo ele, que tanto bradou para outros encantos – “Se inteire da coisa sem haver engano” – se junta a mais um de nossos desencantos.
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