Nós, seres (DES)humanos, por Epitácio Rodrigues
sáb, 6 de dezembro de 2014 07:57* Epitácio Rodrigues
Renato Russo cantou “a humanidade é desumana, mas ainda temos chance”, paradoxo da nossa compreensão do ser humano. Realmente, se é humano não pode ser des-humano, pois o prefixo “des” nega o radical do termo. Mas não podemos contestar a verdade que a frase expressa: “somos humanos e des-humanos”. Se a humanidade é o nosso diferencial em relação aos outros seres, como podemos não ser e ainda continuar sendo humanos? Os nossos discursos estão repletos de frases e dizeres que alegam falta de humanidade a alguns indivíduos pelas ações condenáveis – “você é desumano”. Paradoxalmente, os protagonistas dessas ações apelam para sua humanidade – “sou apenas um ser humano” – para galgar compaixão dos seus censuradores. Uma ambiguidade que explicita um pensar confuso sobre nós mesmos.
No lugar comum do cotidiano, ignorado pelas especulações metafísicas da filosofia clássica, as nossas compreensões ganham visibilidade em atos, posturas, falatórios e consolidam mentalidades que vinculam perigosamente um entendimento confuso como fundamento de ações igualmente confusas.
As raízes desse discurso são explicadas pela encontro de duas tradições: uma semita, outra grega. A palavra humano vem de húmus, termo latino e significa solo fértil. É uma ressonância da concepção semítica de homem, como ser terreno, expressa no Gênese: “Deus formou o corpo humano usando para isso o pó da terra. Depois, soprou nele o sopro da vida, e ele veio a ser alma vivente” (Gn 2,7). O nome Adão – derivado de adamah em hebraico – significa terra e Eva significa vida: “a vida que é tirada da terra”. O ser humano é um ser terreno, no sentido de que está situado entre o céu e o inferno. O primeiro, morada dos seres divinos: Deus, anjos e toda a sua hierarquia, cuja característica é a perfeição; o segundo, literalmente, lugar inferior, habitat dos seres malignos, o diabo e sua corja, lugar onde se cultiva os valores mais baixos e mais perversos. Entre os extremos, céu e região inferior, está a terra, o lugar do ser humano. As palavras do salmista são incontestes: “Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste: que coisa é o homem, para dele te lembrares, que é o ser humano, para o visitares? No entanto o fizeste só um pouco menor que um deus, de glória e de honra o coroaste” (Salmo 8, 4-6).
Esse um peregrino, situado entre o céu e o inferno, que marcha à perfeição, corre sempre o risco de desviar-se do caminho, porque possui a liberdade para decidir e agir. Assim, quando alguém evoca a expressão justificadora: “sou apenas um ser humano”, quer apelar à imperfeição inerente à sua constituição fundamental. Essa visão herdada da cultura religiosa semita coloca o ser humano como uma imagem e semelhança de Deus, com a diferença de ser portador de imperfeição, fragilidade ao erro.
Por outro lado, quando se diz que o ser humano é desumano, que se deixa levar pelos instintos, emoções e paixões, essa compreensão tem suas raízes na tradição filosófica grega de base platônico-aristotélica, que entende o homem como zoon lógicon, um animal racional, sendo o ideal de perfeição o desenvolvimento da sua capacidade de racional. Aristóteles explicita que a “função própria do homem é uma certa espécie de vida, e esta é constituída por uma atividade ou por ações da alma que implicam um princípio racional” (Ética à Nicômaco, p. 27).
O filósofo Jacques Maritain, no livro Sobre a Filosofia da História, sintetiza essa consciência ocidental a respeito do homem nos seguintes termos: “um ente dotado de razão deve, pois, necessariamente, de um modo ou de outro, ser progressivo, não imutável; e progressivo no sentido de progresso para o aperfeiçoamento, para o bem. Mas, de outra parte, a noção de para o mal está implicada na essencial fragilidade de um ser racional que é um animal” (1967, p.21). Para ele, o homem como ser racional busca o progresso ou perfeição da sua racionalidade, mas por outro lado, ele também é um animal, entendendo por isso todo o aspecto “bestial” da sua natureza: instintos, pulsões e emoções.
Assim, a origem da compreensão do senso comum está alicerçada no cruzamento de duas grandes tradições: a semita e a greco-romana. A primeira enfatiza a situação do ser humano na cosmologia religiosa entre o Céu e o Inferno. No segundo caso, a visão de homem está situada na relação de aproximação e diferença entre ele o os outros animais, entre racionalidade e irracionalidade. Isso explica essa ambiguidade discursiva da qual somos herdeiros e propagadores.
* Professor de Filosofia e escritor
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Gostei muito deste texto. Normalmente não nos preocupamos em pensar de onde vem as nossas compreensões mais cotidianas. Apenas as reproduzimos.