Alguém me abana?, por Marli Gonçalves
ter, 4 de fevereiro de 2014 00:00* Marli Gonçalves
Esta semana arrasei. Cada dia da semana postei no Facebook uma foto “selfie”, posando com um dos leques de minha modestinha coleção. Tão modesta que mostrei toda ela, em poucos dias. Foi um sucesso, com um monte de “curti”, fiufiu, elogios. Estou até pensando o que vou aprontar agora, mas o problema é que não gosto muito de usar roupa; sangue de índio. Uma parte do corpo por dia? Posso mostrar? E se me censuram? O negócio está preto, não se pode facilitar.
O tempo está muito seco, opressivo, quente e a gente precisa de um ventinho. Então eu me abano com os meus leques mesmo, que ventilador e ar condicionado gastam energia e energia é dinheiro. O calor de um verão não aproveitado, no entanto, frita os miolos, tira forças e até pensar é difícil, imaginem escrever. Mas estou apenas disfarçando para entrar no assunto que pretendo expor, sério, uma vez que não sei receita de bolo: a censura que nos ronda, sopra um hálito quente aqui, ali. Como diz um amigo, um dia censuraram X e eu não fiz nada; no outro, Y e eu não fiz nada; depois fui eu e eu não tinha a quem recorrer, parafraseando Martin Niemöller.
Todo santo dia ficamos sabendo de alguém punido e banido pelos controladores das redes sociais. Essa semana foi o genial fotógrafo Gal Oppido a vítima. A conta dele no Instagram, com milhares de seguidores e onde ele diariamente posta verdadeiras obras de arte, fez puff! Sumiu, sem explicações. Provavelmente, desconfio, por causa de “alguém” (covardes nunca se apresentam) não gostou de algum pedaço de pele negra que viu de um dançarino maravilhoso que ele coincidentemente fotografava para um trabalho especial. A gritaria foi geral e a conta voltou.
Porém, não é só na rede que a tesourinha anda cortando, editando. Não é que o Ministério alterou a classificação do pueril Confissões de Adolescente de 12 para 14 anos? Não é que esses pastores políticos de quinta categoria toda hora vociferam contra alguma charge, piada, filme, cena de tevê e ameaçando jogar hordas moralistas babando em cima de nossas canelas?
Sou do tempo da ditadura. Cresci sob sua égide, sem poder ler o que queria nem falar tudo o que pensava, nem fazer o que eu queria. Cresci aprendendo a olhar para os lados, sabendo que tudo estava sendo registrado, mesmo que mal e porcamente, tanto que hoje os arquivos desapareceram, por aqueles homens que nos cercavam, sempre em seus ternos baratos, listrados, óculos escuros, e que mais pareciam bandidos do que tiras. Com 15 anos um dia vi um ônibus chegando e levando embora quase uma centena de amigos roqueiros presos. Lembro apenas de ter agradecido a Deus esses minutos que me atrasei – eles ainda teriam de me explicar, menor de idade que era. E bastava o corre-corre: um deles estava com uns 50 ácidos e não teve dúvida: jogou na boca dos amigos o mais rápido que pode. O resultado foi certamente uma das prisões mais engraçadas daqueles tempos negros, pois todos começaram a “viajar” ao mesmo tempo. Apenas um jornal fez esse registro – a foto desse bando de malucos – imagem que guardo na memória – esse lugar ainda indevassável, nosso mais valioso cofre.
“Eles”, os inimigos, também tentavam outros disfarces: casais namorando no muro, mendigos, sempre perto das janelas para gravar as conversas. Mas, enfim, ainda disfarçavam.
Agora não. O tiro é direto. Cortam – às vezes a gente nem fica sabendo, porque o que os olhos não veem o coração não sente. O que pretendem?
Teimam em nos ensinar. Querem voltar as nossas cabeças para que vejamos apenas um lado, que ainda explicam, como se fôssemos todos uns imbecis de marca maior como se falava antigamente.
O jornalismo, pobre jornalismo, editorializado. Para um lado, para outro. As cenas do cinema nacional, o que um crítico apontou outro dia, são chatas porque são expressas – ele andou até ali, viu? Pegou o copo. Bebeu. Caiu. Era veneno (e falta mostrar aquele caveirinha com os ossos cruzados para terem certeza se você entendeu). Criam assim gerações de autômatos, preguiçosos, jovens de olhar vazio, como alguns que tenho encontrado. Como os que estão nas ruas sem saber para o quê.
Deixem-nos em paz. Deixem-nos pensar, formar opinião. Sem cabresto. Estamos em outros tempos e devíamos estar construindo uma moral, sim, porém mais aberta e condizente.
Deixem os pensamentos ser ventilados. Com eles não dá para usar leques.
São Paulo, fevereiro 2014, e corpos desnudos aflorarão logo mais de todos os cantos.
*Jornalista – Vou posar apenas de leque. Acho chique demais. Aprendi a abri-los como o fazem as espanholas, com aquele barulhinho. E vou torcer para que as tevês contratem moças para cameraman. Aí talvez a gente possa ver que nas escolas de samba também passam corpos masculinos dignos de escultura. Isto é: se elas não forem censuradas, claro!
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