O carro de boi e Uberabinha
qui, 27 de março de 2014 00:54
O dia amanhece claro e quase sem nuvens. Junto com os cantos dos passarinhos que habitam as árvores da praça da Liberdade, ouve-se um som inconfundível saindo de um barracão próximo ao pasto do Patrimônio da Santa, onde pernoitaram, depois de chegar de Cruzeiro dos Peixotos, o carreiro e seu filho mais velho. Um guinchado estridente, parecido com cem pombos gruindo ao mesmo tempo, resultado do esfregar do eixo de cambreúva, madeira dura, preso ao cocão do meio das rodas pelo chumaço de canelão, madeira mole, combinação que faz o bicho cantar de verdade. As rodas, uma de cada lado, imponentes, feitas de duas peças de cambreúva unidas por um aro de ferro fundido, juntado ali ainda vermelho e quente. Quando o ferro esfria a madeira chega a estalar, garantindo que ninguém mais consegue desatar um do outro. Por isso os cravos de ferro, com cabeça em forma de pirâmide, acabam servindo de ornamento pois, necessidade de reforço a roda não tem. Na ponta do cabeçalho dá para ver a chaveta que segura a canga dos bois de coice. A junta à frente é formada por mais três carreiras de bois, amarrados pelos chifres através do ajoujo, que serve para juntá-los aos bois de coice, mas também pode ser usado para aquietar menino danado. Na mesa, geralmente feita de cambreúva também, estão o milho, o arroz e outras coisas da terra que o carreiro trouxe na noite anterior, lá das roças de Cruzeiro dos Peixotos. Seu destino é o Largo do Comércio, onde deixa sua carga e enche seu carro de boi com fumo, sal, foice, enxada, café, açúcar, sabonete, uma boa pinga e diversos outros artigos industrializados que vai levar para o pessoal da roça. É o tempo de carregar a mesa, amarrar direitinho e pegar a estrada de volta, numa viagem musical de quase 10 horas, sem pressa nenhuma.
O carro de boi era o principal meio de ligação entre a cidade de Uberabinha e a zona rural circunscrita, nas primeiras décadas do século vinte. O vai e vem de carros de boi nas estradas de terra que ligavam a nascente cidadela às fazendas de Cruzeiro dos Peixotos e outras localidades próximas era intenso. Havia até uma competição entre os carreiros para ver quem chegaria primeiro na cidade e pegava as melhores mercadorias para o retorno. Alguns chegavam a passar sabão no chumaço para o carro parar de cantar. Dessa forma conseguiam começar a jornada sem alarde. O pernoite costumava ser em um barracão perto do pasto do Patrimônio da Santa, onde hoje está o bairro Fundinho, nas imediações da Biblioteca Municipal. Depois iam para o Largo do Comércio, atual praça Doutor Duarte para descarregar sua mercadoria e carregar com produtos industrializados, geralmente na base do escambo. Quase ninguém usava dinheiro.
Contam que, em 1920, havia cerca de seiscentos carros de boi na cidade obrigando o Agente Executivo do município, João Severiano Rodrigues da Cunha, a criar leis para organizar o tráfego. Quem não fosse do município não podia mais pernoitar na cidade. Os carros de boi também não podiam transitar pela avenida Affonso Penna e eram obrigados a sair por onde entraram.
Quando os Ford 29 começaram a chegar, as pessoas foram abandonando os carros de boi. Alguns marceneiros que os fabricavam passaram a construir carrocerias de caminhão. Certa vez conheci um marceneiro, octogenário, que construiu as próprias máquinas para fabricar carrocerias. Lembrava que, antes, quando menino, lá pelos idos de 1930, ajudava seu pai a tocar o carro de boi na estrada de terra batida que ligava Cruzeiro dos Peixotos, onde tinham uma rocinha, à cidade de Uberlândia. Comentou que era uma vida sofrida, mas emocionante, que deixou saudade. O pior eram os espinhos na estrada que entravam nos pés descalços. Sobre a profissão de marceneiro, recorda que tinha um caminhãozinho em Cruzeiro dos Peixotos que ia para Uberlândia. Ele não tinha portas. Tinha dois caixotes acoplados e as pessoas iam do lado de fora, naqueles caixotes. Não havia risco de as pessoas morrerem porque a velocidade era tão baixa que, se alguém caísse no chão, nem se machucava.
O carro de boi colaborou imensamente para o desenvolvimento do Triângulo Mineiro e fazia a ligação entre a região e Goiás. O uso do carro de boi como meio de transporte de cargas praticamente desapareceu hoje, mas a tradição se mantém em várias cidades da região, que fazem romarias e encontros. Coromandel, Vazante e Lagoa Formosa fazem, todos os anos, as tradicionais caravanas de carros de bois. São os mesmos carros usados pelos pais ou avós dos que hoje desfilam, guiando os bois para manter viva a tradição.
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Coimbra Júnior.
(*) Administrador de Empresas, especializado em Finanças. Trabalha atualmente na Via Travel Turismo. Criou a página História de Uberlândia no Facebook.
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