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Coluna: Furando a Bolha (16/10)

sáb, 16 de outubro de 2021 09:35

Defenda a democracia

Ruan Espíndola[1]

por Leandro Alves de Melo

A democracia não se restringe a um regime de governo em que o povo manifesta periodicamente a sua vontade por intermédio das eleições. Trata-se de um conceito simplista que não mais guarda respaldo na literatura política e jurídica. A democracia deve ser entendida como uma balança. Em um prato, temos a vontade popular e, no outro, temos o respeito à Constituição. Assim, a democracia é expressada como o equilíbrio entre a vontade da maioria e a Constituição, a qual simboliza o limite à vontade da maioria e o controle para que o Poder se mantenha pulverizado entre as instituições. Quer-se dizer que a democracia não pode se traduzir em uma ditadura da maioria, pois ela deve ser constantemente limitada e controlada para que o Poder se mantenha diuturnamente difuso nas instituições.

É certo que existem níveis de democracia, levando em consideração diversas variáveis como a liberdade, educação, liberdade de imprensa, a cultura política, pluralismo político, etc. Todas essas variáveis, no entanto, demonstram que quanto mais democrático um país é, maior o nível de controle e fiscalização que existe sobre os Poderes. Nesse ponto, é imperioso destacar que não existe democracia plena sem o controle para que o Poder não se concentre.

Deve-se notar que a vontade que irá prevalecer é a da maioria, desde que não suprima o direito das minorias. Nesse sentido, a vontade da maioria que deseja suprimir direitos de um pequeno grupo da sociedade, ainda que seja uma vontade majoritária, não é uma vontade democrática.

Pela outra face da moeda, no entanto, é democrática uma decisão que, ainda que não respaldada pela maioria da população, reconheça direitos das minorias. O reconhecimento de união homoafetiva, a título ilustrativo, ainda que não haja concordância da maioria da sociedade brasileira, foi uma decisão democrática, uma vez que foi reconhecido o direito de uma minoria se casar, direito esse que era suprimido pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Voltando à metáfora da balança: se houver um desequilíbrio entre os pratos da balança, podem as instituições atuar para reequilibrá-la. A essa atuação no sentido de reestabelecer o equilíbrio entre os pratos da balança, dá-se o nome de função contramajoritária, que seria entendida como a atuação contrária à vontade da maioria para fazer prevalecer a Constituição e, consequentemente, reestabelecer o equilíbrio. Sendo assim, a função contramajoritária é essencial para a democracia, mais que isso: é inerente ao pleno funcionamento da democracia, pois é ela o principal – e mais radical, motivo pelo qual deve ser usada com parcimônia – mecanismo de controle da democracia.

Com base em tudo isso, percebe-se facilmente que quanto mais órgãos capazes de controlar as instituições, maior o nível democrático de um país. Em outras palavras, a democracia é inversamente proporcional à concentração do Poder. É exatamente esse o motivo pelo qual frases e atos contrários à existência de outros Poderes são atos antidemocráticos. Não se trata apenas de bravata ou liberdade de expressão, mas se trata de atuação capaz de restringir a atuação de órgãos de controle e fiscalização, o que contraria um dos pratos da balança, o prato do controle.

As liberdades, plurais, são essenciais para a democracia. Quanto mais livre uma sociedade, mais democrática. Todavia, a liberdade não pode ser autofágica. A liberdade não protege a vontade de um grupo de querer atentar contra a democracia, dilapidando os órgãos de controle. A democracia protege o direito legítimo de propagar todas as ideologias, desde que as ideologias sejam compatíveis com a democracia. Seja de esquerda ou de direita, a democracia é o limite à liberdade de expressão.

É importante ressaltar que a expressão democracia é também um conceito vago que autocratas constantemente usam para se legitimarem no Poder. Claro que não estão preocupados com a democracia, mas nem o mais perverso autocrata se reconhece como tal, motivo pelo qual constantemente usam o discurso enviesado da democracia apenas como forma de legitimação.  Normalmente o fazem de duas formas. i. Usam o discurso de que possuem o povo ao seu lado e, portanto, tendo a vontade do povo, qualquer decisão tomada por eles é democrática. Para aprimorar essa vetusta tática, costumam inclusive sequestrar símbolos nacionais para dar a entender que aquela parcela de apoiadores representa a totalidade do povo. Bradam que agem em nome do povo, mas apenas em nome de parte do povo. Usam o chamado truque do ilusionista, agredindo a democracia, mas argumentando que agem para proteger a vontade do povo, ou seja, a democracia.

Os mais perversos autocratas usavam constantemente essa tática. Hitler, em seus discursos, constantemente falava em democracia, vontade do povo, anseios da população e tantos outros conceitos indeterminados que seduziam a população e legitimavam sua política sádica. Esse é um discurso facilmente detectável e devemos tomar cuidado para que não caiamos nele: não há democracia fora da Constituição, não há democracia alijando as instituições que controlam os Poderes e não é possível falar em apenas um líder político capaz de tutelar a vontade do povo, porque a democracia é plural, pulverizada e controlada. É no consenso/conflito da política que se percebe, de fato, o anseio daquela população, não no discurso de apenas um líder político. Portanto, a democracia sem o intermédio das instituições de controle é um discurso vazio e autocrático.

Outra forma que costumam fazer para usar o discurso oco da democracia, mas que se trata, na verdade, apenas de perfumaria, é ii. desqualificar todos os problemas da sociedade como sendo antidemocráticos. Vulgarizam, pois, a democracia e tudo de ruim que está aí acaba sendo antidemocrático. Assim, podem não negar que praticam atitudes antidemocráticas, mas falam que o adversário – e sempre tem um adversário para fazer o antagonismo político – praticam atos errados os quais, igualmente, prejudicam a democracia. Nesse sentido, para eles, uma decisão ruim de uma Corte Constitucional acaba sendo tão antidemocrática quanto um ato a favor do fechamento da mesma Corte Constitucional, o que acaba legitimando o discurso de que as próprias Cortes Constitucionais minam a democracia e rasgam a Constituição.

Não se está dizendo que todas as decisões das Cortes Constitucionais são corretas ou impassíveis de críticas. Longe disso! Como ator político que é, as decisões das Cortes Constitucionais são criticáveis. As críticas, no entanto, devem ser institucionais e quanto ao conteúdo das decisões, sequer passando pela possibilidade de eliminar um órgão controlador do Estado. O combate às decisões ruins, ademais, deve também ser na via institucional, por intermédio dos recursos, das ações, etc.; não com ameaça de destituição de seus membros ou de descumprimento das ordens judiciais. Decisões frágeis e ruins se combatem pela via institucional. Que se combata as decisões ruins, mas que se salve a democracia.

A democracia precisa ser constantemente cultivada e protegida, tal qual um relacionamento amoroso. Não é de um dia para o outro que a democracia acaba, mas é pela série de atentados pelas quais ela passa ao longo dos tempos. Voltando à analogia amorosa, não é pela toalha jogada na cama que termina um relacionamento, mas é pela série de brigas e ofensas havidas até culminar com a última discussão. Com base em tudo isso, percebe-se que o Brasil vem sofrendo um déficit democrático nos últimos anos, uma vez que as instituições vêm perdendo a sua autonomia e independência: atuação no sentido de politizar as polícias, o aparelhamento das polícias e das forças armadas, o desmantelamento da controladoria geral da União, a PEC 5/21 que fere a independência do Ministério Público, dentre vários outros fatores. Nesse sentido, todos esses atos que minam a independência dos órgãos controladores do equilíbrio democrático, acabam reduzindo o nível democrático do país.

Não há a intenção de “fulanizar” o debate ao procurar um responsável. A intenção é que nos mantenhamos atentos e vigilantes, pois a democracia sempre corre risco, mas nos últimos tempos o risco é maior do que o usual. Defendamos a democracia e façamos como Ulysses Guimarães, ao promulgar a Constituição, em 5 de outubro de 1988, que recentemente completou 33 anos de idade: tenhamos nojo e ódio da ditadura!

[1] Mestre em direito público. Advogado e professor universitário.

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