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Ao entardecer, por Petrônio Souza Gonçalves 

sáb, 1 de março de 2014 00:00

* Petrônio Souza Gonçalves

Tudo era casa, era jardim. A manhã chegava discreta, enquanto os meninos corriam nas bicicletas, a caminho da escola. Assim nascia o dia, com um doce gosto de café dourando as horas, dizendo que as casas estavam despertas para a vida que se renova a cada manhã.

A mãe teve tempo de chegar à porta e chamar pelo filho que ia longe, contornando a esquina. O menino ouviu e voltou de cabeça baixa para buscar a fruta carinhosamente embrulhada com ternura e afeto em guardanapo bordado – só as mães que amam fazem isso. A cidade é outra, enquanto as coisas ruins não têm tempo de acordar. São nessas horas, de consentido descuido, que compreendemos o mundo que não temos, a paz que não vivemos, o presente que insiste em não ser futuro.

Em todas as cidades brasileiras, a manhã chega assim, como se viesse de outro mundo, não povoado por nós. Ao contrário dele, fazemos esse tempo alquebrado, como poucas coisas renascidas na manhã do pensamento, e quase nenhuma poesia. Pouco importa se faz chuva, se faz sol, quando o dia chega de mansinho, renovado em luz em nossas janelas, nos convidando para viver a paz desejada dos quintais, para sentir a vida que poderíamos ter e não vivemos. É como se as coisas acontecessem em um plano paralelo, distante e diante de todos nós. Mas é preciso ter olhos despertos para vê-lo, para identificá-lo…

Mal ainda nascido, o dia que amanheceu ensolarado, terminará velho, nublado, com nuvens de medo e incompreensões se movendo por todos os lados. Não haverá chuva, apenas sombra e segredos, enquanto tudo que se fez velho, triste e pesado, ficará pairando sobre nós, querendo descer à terra todo o mal que dela evaporou.

Ainda assim, as janelas estão abertas, admirado a rua que não passa, a cidade que fica e o tempo que insiste em não ser, marcando suas horas no eterno mover das sombras, dizendo que falta luz para ficar.

É nessas horas que entristeço, olho em volta e vejo o mundo que não mereço, tão triste, tão pobre de nós mesmos… Opaco, sem brilho, sem paisagem, ele vai de fininho, querendo ir embora, quase constrangido, levando a luz que não conseguimos conquistar. Cansado de nossas coisas, tão cheio de nós, ele vai indo, fluindo por nossas mãos, sem nos dar tempo de recomeçar. Não tem mais lugar, nem vontade de ficar. Aí acedemos o mundo que não temos, esse mundo que inventamos, que herdamos, efêmero que ilumina só aqui, ali e acolá, tentando dar luz ao que não vivemos, e esconder de nós o que não sabemos. Já é noite, anoitece nossos corações, faz frio. Eu espio pela fresta da janela o mundo lá fora, tão distante do que o que a pouco nasceu… Viver é mesmo esse recomeçar danado, pena não termos mais jardins, mais manhãs para aplacar a crua e contínua realidade das horas.

Nesse instante, vem aquele antigo desejo de ser pássaro, de quebrar as horas, herdar o mundo, e romper com todas as barreiras.

* Jornalista e escritor

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