A poesia prevalece
sáb, 14 de dezembro de 2019 05:52Com Assessoria
Fernando Anitelli ritmou, entre muitos versos, a frase “A poesia prevalece”. Um grito de resistência em meio ao caos de deboche social e de contracultura que constantemente se avizinha sobre a classe artística e o mundo. Ao mesmo tempo, uma frase que dedica a luminescência de nossa consciência livre quando imersa ou fabricando qualquer expressão de cultura. Eu diria que palavras de prenúncio.
No último sábado, 7 de dezembro, a cidade foi uma vez mais agraciada com presentes de seus filhos culturais. Os artistas filhos dessa terra sempre organizam apresentações a fim de brindar a população araguarina, tão carente de tudo, com mais emoção verdadeira. Este ano não foi diferente. O grupo EmCantar, com o perdão do trocadilho, já nos “encantou” com tantas obras primas como Parangolé, Dum Dum e Entre Dentes, expressões de cultura nos segmentos do teatro musical, da música e da literatura, além de muitas outras produções culturais e socioculturais que o grupo promove.
Grupo que, no ano passado, fez do palco do Teatro Odette a casa da Dona Baratinha em uma remontagem popstar da célebre história que cativa a infância. Agora, a trupe abrilhanta o único palco disponível na cidade com o “Canto da Gente”, uma história que faz lembrar as nossas próprias “estórias”. Um passeio pelo infinito de memórias particulares que, hora ou outra, nem temos certeza se são nossas, mas, tão constantes no imaginário popular que a gente acaba se apropriando para poder contar para os nossos filhos e netos.
Tive a honra de assistir ao ensaio geral desse espetáculo e agora estar na estreia dele no nosso palco local. Um deslumbre à primeira vista, foi o que tive da peça que reúne canções autorais de nomes da música nacional como Milton Nascimento. O espetáculo recebeu alterações para se tornar a obra prima de lembranças que pude presenciar naquele sábado. Confesso que, à segunda vista, aquele texto que me marcava pela sutileza das mensagens, me despertou para reflexões ainda mais profundas. Embarquei nos regionalismos representados pelos personagens que, apesar de trazerem caracterização, gestos e cacoetes de fala de regionalismos mineiros, sem estigmas e estereótipos, vi ali claramente representadas (espero que propositalmente) cada vasta região de nosso continental país. Como se Minas fosse um país inteiro.
Como se não bastasse a primazia dessa relação, era clara a defesa de nossas raízes no passeio pela nossa ancestralidade. Desde as homenagens aos índios e aos contos folclóricos, à nossa miscigenação afro europeia, que nos coloca destacados como nação-mundo perante as hipocrisias de segregação e discursos esdrúxulos de ódio sobre diferenças raciais (que inexistem a meu a ver). Mensagens quase subliminares que, aos olhares menos atentos, poderiam passar despercebidas em meio à história principal sobre as férias da menina Clara com seus primos na casa dos avós, suas brincadeiras, traquinagens, perdas e descobertas.
A dramaturgia de Ana Lopez, atriz também responsável pelo texto, “reúne experiências da infância vivida no interior e do imaginário de quem cresce brincando no quintal, em meio às árvores, passarinhos e vagalumes”. E torno a dizer que espero que essas relações de ancestralidade, perda, preservação, infância, coragem, todas elas tenham sido propositais, pois foi esta segunda vista que me fez crer ainda mais que a poesia que inspira a alma e nos alimenta o viver ainda prevalece.
Os rostos no palco conhecidos e novos, a se conhecer, fitavam um trabalho de direção e encenação a se acompanhar do jovem Rafael Michalichem. O mestre Marco Aurélio Querubim, o Marquim do EmCantar, conservando, mesmo na pele do personagem, seu tom didático e educativo, de voz impecável e expressões marcantes. Trouxe à baila um personagem bastante rico que interpreta o que, para mim, foi a canção mais inspiradora do espetáculo: Passarim, de Celso Adolfo. Uma música que nos leva à reflexão sobre como tratamos a natureza, a vida e o que queremos e fazemos diariamente para garantir o mundo feliz e belo que almejamos.
Juliésio, interpretado por Kainã Bragiola, foi sem exceção brilhante. De bom humor e piadas rápidas, foi aquele menino que planejava, conduzia e repercutia as sapequices de maior atrevimento. Seu bodoque arremessou em nossa mente a memória das traquinagens mais frequentes que se pode ter na infância. Moleque raiz, com sotaque curioso e voz firme, que se destacava quando em coro.
Em geral o uso bem feito de expressões diferentes do teatro em um único espetáculo me cativa. O EmCantar é mestre nesta mescla singular. Canto da Gente une teatro musical e o elemento fantoche. Que lindo foi ver a atuação de Luciene Andrade e Viviane Rodrigues, que além de interpretar Maria Luz e Aurora, respectivamente, emprestaram voz e performance ao vô Bento e vó Nena. Mesmo sabendo se tratar de um boneco, era como ver uma animação de cinema, visto a riqueza das personagens completamente diferentes das primas interpretadas pelas mesmas atrizes.
O vô Bento era mais sapeca que as crianças. Em minha infância nunca tive relação muito profunda com meus avôs e ver aquele personagem interpretado pela talentosíssima Luciene, me fez lembrar a vontade que sempre nutri de ter essa relação. Sempre imaginei que meus avôs eram daquele jeitinho, apesar de não serem. O que era nostalgia se misturou com a sensação de falta e a ânsia de um desejo infantil e verteu o primeiro oceano de lágrima. Contido.
Como de praxe nos musicais do EmCantar, a banda nunca é só o grupo de músicos que faz a trilha do espetáculo. Ivan Ribeiro (bateria), Carlim Ribeiro (Violão, Teclado e Arranjos) e Carlos Júnior (Baixo), dão tom, letra e alma, além de boas interações interpretando, Joaquim, Zé Pimenta e Manoel, respectivamente. Alívios cômicos à trama que se desenrola entre os personagens principais. Nem mesmo o pequeno desajuste de microfone de Ivan, o inibiu das melhores expressões em reação com o espetáculo que se desdobrava em descobertas e confusões. Destaque também a ser feito ao Zé Pimenta, que instrumentalizou canções e deu às falas da vó Nena em uma das cenas, reações engraçadas no melhor tom que se pode haver.
De maneira geral, quando você começa um trabalho cultural em sua vida, espera poder um dia alcançar (ou participar) o nível de transformação social e encantamento que o Grupo EmCantar realiza. Provocar as emoções que provocam e fazer nascer sorrisos e lágrimas de alegria e nostalgia que arrancam da essência de nossas almas a vontade (sempre maior) de viver no mundo em que arte deles existe e onde o que eles constroem prevalece. Sua poesia em o Canto da Gente é graça que nos faz querer fazer parte, estar dentro do todo que com eles nasce e renasce do jeito certo de ser criança.
Minha esperança é que sempre viva, que prevaleça e encha a caixa vazia do teatro de transformação, comédias e tragédias para extrair de nós, nobres espectadores, o feitio de nossos melhores atos. Por sincero que devo ser, ao sair daquele teatro me senti renovado, preenchido, feliz, em paz! Gratidão e lágrimas, superiores aos aplausos. Sigamos, no ritmo do Dum Dum, “avanteeeeeeeeeeeeee”!
GRUPO EMCANTAR – CANTO DA GENTE
Ficha Técnica
Concepção: Grupo EMCANTAR
Dramaturgia: Ana Lopez
Direção e Encenação: Rafael Michalichem
Direção Musical: Carlim Ribeiro e Carlos Júnior
Elenco: Ana Lopez (Clara), Kainã Bragiola (Juliésio), Luciene Andrade (Maria Luz / Vô Bento), Marco Aurélio Querubim, Viviane Rodrigues (Aurora / Vó Nena)
Banda: Carlim Ribeiro (Zé Pimenta), Carlos Júnior (Manoel), Ivan Ribeiro (Joaquim)
Cenografia, figurino e visualidades: Pablo Mendonça
Iluminação: Mário Leonardo
Animação: Guilherme Lopes
Sonorização: Ricardo Campos
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