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Dislexias de desenvolvimento

sex, 12 de dezembro de 2014 00:01

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1-As dislexias de desenvolvimento, essas que aparecem na infância, são todas iguais?

Não. Um tipo bastante conhecido dos professores é a grande dificuldade que determinadas crianças apresentam para aprender a ler as primeiras palavras, para estabelecer as correlações entre grafemas (letras) e fonemas (sons). Cada língua tem os sons que lhes são próprios. O português tem uns, o inglês tem outros e o russo, outros sons diferentes. Quando está aprendendo a ler, a pessoa precisa estabelecer correlações no sentido de reconhecer qual letra ou agrupamento de letras corresponde a certos sons. Por exemplo, precisa perceber que a letra C quando seguida da vogal A forma o som KA e que L antes de H seguido de A produz o som LHA.

A dificuldade para realizar esse processo acomete especialmente crianças com dislexia de desenvolvimento. Elas trocam as consoantes surdas e sonoras (p/b,t/d, c/g), por exemplo, cola por gola, invertem a posição das letras ou omitem algumas ao escrever uma palavra. Essas crianças não conseguem elaborar o mapa entre os sons de determinadas palavras e as letras que as constituem quando escritas. Esse tipo de dislexia é detectado logo no início do processo de escolarização e pode acompanhar a criança por muito tempo.

2-De que outras formas pode manifestar-se a dislexia de desenvolvimento?
A dislexia ou dificuldade de leitura pode manifestar-se num nível diferente. A criança é alfabetizada, mas se mostra incapaz de adquirir estratégias de produção e decodificação textual. Até consegue ler as palavras. Não consegue, porém, estabelecer ligações entre elas, nem correlacionar as sentenças e formar a macro-estrutura do texto.

Essa dificuldade de processar textos faz com que mal e mal continue o processo de escolarização. Embora consiga passar pelo ciclo básico, quando as disciplinas adquirem especificidade e a linguagem escrita se transforma num instrumento para a aprendizagem de matemática, história, ciências, geografia, entre outras, seu desempenho é catastrófico. No geral, é uma criança que vai relativamente bem até a terceira ou quarta série, mas não consegue acompanhar a quinta série.

Esse quadro, até onde sei, foi descrito pelo nosso grupo e eu o chamei de dislexia discursiva para diferenciar da dislexia ligada ao fonema, à sílaba, ao universo da palavra, enfim. Ele reflete uma incapacidade de processar discursos escritos, uma incapacidade para decodificar e formular o texto escrito. A criança vai mal na prova de geografia, por exemplo, porque não consegue entender o enunciado das questões e muito menos escrever uma resposta. Em muitos casos, a criança domina as informações e sabe transmiti-las oralmente, mas não é capaz de entendê-las quando está lendo.

3-Quando a professora faz um ditado, essas crianças são capazes de escrever corretamente as palavras?
Se a dislexia for discursiva, conseguem; se for fonológica, não conseguem. Crianças com dificuldade de imaginar a estrutura da palavra correspondente ao som vão cometer erros, porque não têm esse mapeamento bem estabelecido. Como se trata de duas situações diferentes, obviamente elas merecem atenção individual e personalizada.

4- Existe um padrão de dificuldades que se manifesta em todas as crianças?
Durante muito tempo, a palavra dislexia foi usada impropriamente para designar os transtornos da aprendizagem em geral, incluindo as dificuldades de cálculo e de raciocínio. No entanto, dislexia é a dificuldade de leitura e de compreensão do texto escrito.

Crianças com dislexia fonológica, essa que aparece nos primeiros anos de escolarização, podem apresentar certas peculiaridades durante a aquisição da linguagem oral, por exemplo, certo atraso nas fases observadas pelas crianças normais e dificuldade na realização de tarefas de consciência fonológica como rimar palavras, por exemplo. Neste momento, não se refere ainda a escrita, mas à estrutura sonora da palavra que é assimilada antes da alfabetização.Isso quer dizer que a dislexia fonológica de desenvolvimento pode ser percebida antes de a criança começar o processo de alfabetização, o que permite acompanhá-la precocemente e com um pouco mais de cuidado.

5-As crianças com dislexia devem frequentar uma escola comum e priorizar o aprendizado oral enquanto fazem o tratamento específico. Como costuma ser a evolução dessas crianças quando os casos são bem orientados?
Talvez porque, no passado, parte dos transtornos de aprendizagem tenha sido associada às dislexias, a epidemiologia desses processos é muito confusa, tanto no Brasil quanto no exterior.  Para dar uma ideia, os dados sobre a prevalência da dislexia fonológica variam entre 1% e 30%, números bastante díspares.

No que se refere ao tratamento, a evolução do paciente é extremamente peculiar e idiossincrásica. Dependendo de como foi instituído, das características do indivíduo, de seu background familiar, de como foi estimulado durante o desenvolvimento, o prognóstico pode ser melhor ou pior.

Isso vale não só para a dislexia, mas para as disfunções cognitivas em geral. Hoje sabe-se  que o tratamento deve ser individualizado. Lidar com reabilitação nessa área é diferente de tratar um caso de meningite meningocócica. Nessa doença, o tratamento é padronizado. A mesma droga pode ser administrada para a maioria das pessoas, respeitando apenas particularidades como peso corpóreo, dosagem adequada, etc.
Nas disfunções cognitivas e em especial na dislexia, o tratamento é quase sob medida.

6-Além da motivação, que outras estratégias se tornam necessárias?
São pré-requisitos básicos também o acompanhamento contínuo e periódico do processo e a interação com a equipe encarregada da reabilitação na escola. Aliás, o papel da escola é muito importante na detecção e tratamento dessas lesões. Não se pode esquecer de que frequentemente é a professora quem levanta a questão da dificuldade e encaminha a criança para diagnóstico específico.

Por outro lado, a escola precisa estar aberta para adequar-se e interagir com a equipe que está tratando da criança, no sentido de alterar rotinas, fazer avaliações orais etc.

No tratamento das crianças com dislexia, é fundamental harmonizar o trinômio: escola, indivíduo e família.

7-Há como estimular a capacidade de leitura de uma criança?
A capacidade de leitura pode ser otimizada precocemente. Desde que o mundo é mundo, criança pequena gosta que leiam para ela. Se a pegarmos no colo, abrirmos um livro e mostrarmos que a história está ali, registrada naquele livro, estaremos estimulando o desenvolvimento de sua capacidade de leitura e escrita. Primeiro, porque ela começa a interessar-se pelos livros. Segundo, porque estabelece correlações, mesmo que rudimentares, entre o que está sendo falado e o que está sendo mostrado. Terceiro, porque desperta sua curiosidade para decodificar os sinais que se transformam na história que ouve.

Além do start que dá no processo de aprendizado da leitura, ler para a criança é importante do ponto de vista da formação filosófica e psicológica. É importante também porque passa informações morais que a ajudam a socializar-se, a tornar-se um ser humano que respeita regras, planeja, controla suas vontades.

8-Que mais se pode fazer para estimular o desenvolvimento da linguagem nas crianças?
As antigas cantigas infantis que estão se perdendo por influência da mídia precisam ser recuperadas, porque favorecem o desenvolvimento da consciência fonológica, da capacidade de a criança pensar na estrutura sonora das palavras. Quando canta “Atirei um pau no gato-to-to, mas o gato-to-to não morreu” ela vai descobrindo que a sílaba to que aparece em gato, faz parte também de outras palavras. Brincar com rimas é outra estratégia até certo ponto lúdica que não deve ser deixada de lado.

9-Como se deve trabalhar com essas crianças?
O grande problema de uma criança com dislexia fonológica é a correlação entre sons e letras, a correlação fonema/grafema. Para melhorar essa percepção, podemos trabalhar com palavras que têm sons semelhantes em determinadas posições – molhada e folha – com o propósito de fazer a criança reconhecer que a estrutura LH, por exemplo, tem a mesma grafia e o mesmo som independentemente do lugar que ocupe na palavra.

Para abordar a questão dos espelhamentos, isto é, das inversões de sílabas ou de letras, um erro comum nessas crianças, pode-se colorir as sílabas ou enfatizar certos aspectos de uma palavra específica dentro de um texto maior.

O trabalho com rimas para estimular a consciência fonológica, isto é, a capacidade de perceber a estrutura sonora da palavra, também é muito proveitoso. É importante para a criança perceber que o CA de casa é o mesmo CA de cachorro e que peteca rima com sapeca. Outra estratégia é explorar a divisão silábica. É difícil para essas crianças perceberem que as palavras podem ser divididas em sílabas.

Em outra etapa, todos esses elementos são associados ao significado das palavras e do texto. Ler não é simplesmente pronunciar os vocábulos nem estabelecer a correlação entre fonemas e grafemas. É preciso compreender as ideias que o texto veicula.

10- Isso depende de treinamento?
Depende dessa interação dentro de uma perspectiva motivacional e relevante. É fundamental que se estabeleça boa relação entre o terapeuta e a criança que está sendo tratada, que precisa entender o que está sendo feito com ela. Um passo importante na evolução do caso é dado quando ela própria começa a apropriar-se do tratamento e sugere as atividades que deseja fazer. Dentro de certos limites, isso configura melhor prognóstico.

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