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Coluna: Neuropsi (17/02)

qui, 17 de fevereiro de 2022 08:34

RACISMO

 

1-Nos dias de hoje é politicamente incorreto chamar alguém de preto, o certo é afrodescendente. Isso não é frescura dos afrodescendentes? E porque um negro se ofende quando chamado de “neguinho” se ele é negro mesmo?

Acredita-se que o que se combate é o uso das palavras, de maneira que encerrem conotação pejorativa. A palavra “nigrinha”, que é usada como ofensa a uma mulher, deriva de “negrinha” e não deve mais ser usada porque negrinha não é sinônimos de indigna, vagabunda, etc. O recurso de substituição de palavras que adquiriram sentido negativo não é invenção dos negros, nem é “frescura”, e tem base na mesma lógica que faz com que hoje se prefira os seguintes termos: portador de deficiência intelectual e não mais deficiente nem débil mental; portador de Hanseníase e não leproso; soropositivo e não aidético; deficiente visual e não ceguinho; portador de síndrome de Down e não mongol/mongoloide. O raciocínio é extinguir o estigma criado a partir dos conceitos equivocadamente atribuídos aos vocábulos anteriormente utilizados. Embora Jô Soares se autodenomine de “O Gordo” e muitos gordos, magros, carecas sejam amigavelmente tratados por parentes e amigos por apelidos baseados nestes atributos, isto não significa que eles tenham que aceitar serem assim chamados na rua por um desconhecido.

 

2-Qual o impacto do racismo na saúde mental da população negra?

A cada dez jovens que se suicidam no Brasil, seis são negros. O dado, de 2016, está em um levantamento do Ministério da Saúde e da UnB (Universidade de Brasília), divulgado no início de 2019.

Entre 2012 e 2016, a taxa de pessoas brancas entre 10 e 29 anos que tirou a própria vida permaneceu a mesma. Já entre jovens e adolescentes negros ela subiu, de 4,88 mortes para cada 100 mil, em 2012, para 5,88, quatro anos depois.

Um dos grupos vulneráveis mais afetados pelo suicídio são os jovens, e sobretudo os jovens negros, devido principalmente ao preconceito e à discriminação racial e ao racismo institucional.

O racismo gera enormes problemas: pode instalar um processo de ansiedade muito grande, por exemplo. Produz angústia, porque você está dentro de situações de humilhação, e instalação da depressão. É importante que o racismo seja trabalhado na análise para que se entenda como ele provoca esses problemas e, no limite, como pode contribuir para o agravamento de doenças e da saúde mental, sendo os processos de depressão, as crises de ansiedade, as manifestações de uma angústia profunda – constatamos que pessoas negras que apresentam esses quadros têm fortes componentes de racismo.

 

3-Qual a influência do racismo na formação subjetiva tanto de pessoas negras quanto de pessoas brancas?

A ideologia do racismo propõe a desumanização de um em contrapartida do privilégio do outro. Ele incide no negro no que constitui seu sujeito, seu corpo, sua imagem, que é sistematicamente desvalorizada. Em contrapartida, há um modelo universal que está calcado no branco. Um modelo de beleza, de afirmação da história, das produções universais. Tudo está calcado na Europa e nos Estados Unidos, enquanto a África é apresentada como um lugar paupérrimo, selvagem. São nessas contraposições que o racismo vai se inserir. As humilhações cotidianas vão produzindo marcas no negro. E, com a negação sistemática do Brasil e do brasileiro em relação ao racismo, esse sujeito também sofre algumas distorções na forma como ele mesmo vê a realidade, questionando se aquilo que vive [o preconceito] é real ou imaginário.

O racismo, então, constitui um sujeito que nem sempre dá conta de se apropriar das suas percepções e de acreditar que essas percepções são reais. É aí que o racismo vai produzir suas marcas, lacunas que afetam toda a sociedade. É quase natural, até esperado, que toda vez que eu sair de casa me depare com olhares atravessados, com uma recusa de atendimento, com vigia em um supermercado. A escola também desvaloriza esse sujeito por meio de um ensino que não apresenta a História como ela foi de fato.

São informações que a pessoa interioriza e, com isso, constrói no seu interior uma imagem desvalorizada de si. Recentemente em um curso universitário, para citar um exemplo, uma professora disse que as mulheres negras seduziam os senhores de engenho, que elas os provocavam com sua sensualidade e lascívia. Não se olha para o processo violento da escravatura. A história do negro é deturpada para colocá-lo em uma posição de inferioridade, como um sujeito preguiçoso, vagabundo, não intelectualizado.

 

4-Como pode haver racismo no Brasil se não há brancos puros?

Uma pesquisa de opinião realizada por um jornal de expressão nacional mostrou que 87% dos brasileiros acreditam que há racismo no Brasil. Curiosamente, somente 4% dos entrevistados reconhecem que são racistas. Todos os entrevistados diziam que sim, existia racismo no Brasil, diziam que conheciam algum racista, mas que eles mesmos não eram racistas. Quer dizer, a sociedade sabe que o racismo existe, mas há uma constante negação da sua existência. Quando fazem isso, desmontam as evidências do racismo. Afinal, se você assume que o racismo existe, em seguida vai precisar admitir que ele produz privilégios para alguns grupos. E, ao perceber isso, precisa abrir mão de alguns desses privilégios, o que ninguém está disposto a fazer.

O Brasil é predominantemente negro. É composto também por populações brancas pobres e indígenas que precisam ser levadas em conta. Devemos conhecer a história do Brasil, saber que estão em contato com um país que viveu um processo de escravização violento. É preciso que admitam a história do racismo para que possam construir uma psicanálise que seja reflexo da diversidade da nossa nação heterogênea. Essa é uma questão. A outra é que é preciso olhar à luz de um país em desenvolvimento, um país mestiço, e não a partir de um olhar europeu. É preciso discutir suas bases para que haja uma análise mais condizente com a realidade nacional. E, a partir daí, receber um não-branco em seu consultório e olhá-lo dentro da sua dimensão histórica. Não se pode atender um negro sem levar em conta a dimensão do racismo ou o fato de que ele é alvo da polícia 24 horas.

 

5-Qual a maior dificuldade de o profissional de saúde lidar com o paciente vítima de racismo?

O racismo no Brasil é um fenômeno ao mesmo tempo presente e negado. Os profissionais da saúde mental são incapazes de reconhecer a linguagem, o comportamento e as atitudes racistas internalizadas de seu próprio racismo encoberto. Para o usuário afrodescendente, tal experiência, estressante e traumática, tem efeito cumulativo ao longo da vida e impactará a saúde mental da pessoa. O profissional que, teoricamente, contribuiria para o alívio da pessoa, ao contrário, lhe inflige mais dor. Essa invisibilidade do racismo no campo dos dispositivos da saúde mental é aparentemente ainda muito pouco problematizada. Assim, a inserção da temática do racismo como estressor responsável por dor, sofrimento e até morte, na agenda da Psicologia deve ser feita não apenas de forma transversal no currículo, mas também como disciplina específica; é necessária no ensino/treinamento, na prática clínica, e na pesquisa psicológica.

É igualmente necessário promover maior consciência e compreensão de como o racismo opera, a multiplicidade de suas manifestações e o impacto que tem sobre as pessoas. É importante estudar e reconhecer este impacto para que as consequências das agressões raciais não continuem sendo ignoradas, subestimadas.

 

6- Por que ações afirmativas para negros e não para pobres?

Defender afirmativas para negros não implica em ser contrário a ações afirmativas para outros grupos. Ocorre que, de maneira geral, as pessoas se unem em tornos de causas e em grupos em razão das suas especificidades. Assim temos um sindicato só de metalúrgicos, um só de bancários, dentre outros, temos uma Associação de Defesa da Criança com Câncer, tem Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS, tem Delegacia da Mulher e temos duas leis que garantem cotas para portadores de deficiência física nas empresas públicas e privadas. No Rio de Janeiro, em horários de pico, o metrô reserva vagões exclusivos para mulheres para coibir o assédio sexual físico. Em todos estes casos, a motivação é a mesma, tratam-se de medidas que visam atender a necessidades específicas de grupos específicos que, se fossem incluídas em grupos gerais, dificilmente teriam conquistas porque perderiam foco. No Brasil, somente os negros foram escravizados e bastava ter a pele negra para ser discriminado. Isso faz com que os negros, neste país, compartilhem de um conjunto de especificidades que lhes é peculiar. Certamente que existem negros com melhor condição econômica e que não necessitam das vagas das cotas, mas são poucos e as cotas não os contempla. Há também pobres de outras raças, mas não porque foram escravizados. Do mesmo modo que existem trabalhadores que não são metalúrgicos nem bancários, portadores de câncer que não são crianças, doentes terminais que não portam AIDS, vítimas de violência que não são mulheres, desempregados que não são deficientes, mas isto não desqualifica nem invalida a existência, a luta e os propósitos dos grupos identitários que reivindicam seus direitos.

 

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