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Coluna: Furando a Bolha (02/06)

qua, 2 de junho de 2021 08:20

por Leandro Alves de Melo

Supremo Tribunal Federal: o Guardião entrincheirado

O ator político que ganhou mais protagonismo desde a Constituição de 1988, sem sombra de dúvidas, foi o Supremo Tribunal Federal. Se anteriormente era visto como um tribunal de última instância do Poder Judiciário, com a redemocratização passou a participar ativamente dos rumos da política do país, inclusive garantindo uma transição democrática pacífica. Há quem, inclusive, afirme que Supremo passou a exercer o papel de tutor da nossa democracia, bem como dos direitos e garantias das minorias. É triste um país precisar de um tutor para a democracia, mas revela bastante a nossa história.

Vários são os motivos que levaram o Supremo a atuar ativamente na vida cotidiana da política brasileira. Destaco dois: o primeiro se refere ao fenômeno da judicialização da política. A Constituição cidadã trata de diversos temas: direito das famílias, direito ambiental, direito administrativo, direito tributário, previdenciário, etc. Temas que até então estavam no campo da legislação infraconstitucional, mas que agora, por opção do Constituinte, foram constitucionalizados, restringindo a liberdade parlamentar, com a intenção de que o núcleo dessas áreas ficaria apartado da política. Soma-se a isso o fato de que, sempre que provocado, o Supremo deverá decidir sobre o objeto da demanda, o que é chamado de inafastabilidade da jurisdição. Nesse ponto, é de se destacar ainda que os mecanismos de levar essas demandas ao Supremo Tribunal Federal cresceram significativamente de 1988 para cá, pois há muito mais atores que podem levar essas reivindicações à Corte, bem como houve um aperfeiçoamento da jurisprudência e da legislação sobre a competência do STF. Portanto, foram o Constituinte e o legislador os responsáveis por colocar o Supremo Tribunal Federal no centro da política.

O segundo fator de protagonismo do Supremo Tribunal Federal é o chamado ativismo judicial. Se a Judicialização é uma opção do próprio constituinte em ampliar os Poderes do Supremo, o ativismo é uma atuação do próprio Supremo em expandir a sua competência. Isso acontece quando a Corte começa a interferir nos demais Poderes, começa a tomar decisões que extrapolam o julgamento da demanda. A judicialização é um dado incontornável da realidade, mas o ativismo deve ser evitado, pois os Poderes devem ser constantemente controlados.

Fato é, no entanto, que embora seja relativamente fácil conceituar e diferenciar os dois fenômenos, na prática não é tão simples assim. Na verdade, o discurso político-ideológico também dominou a diferenciação entre os dois conceitos. Quem tece críticas ao Supremo afirma que todas as suas decisões são ativistas, da mesma forma que quem tece crítica aos críticos do Supremo afirma que todas as suas decisões estão amparadas na legalidade.

Um fenômeno que chama a atenção é que o Supremo é um ator político, mas que não precisa ser provado nas urnas, isso pois os seus membros são vitalícios. O que se presencia na prática é que essa vitaliciedade traz segurança à Corte para tomar decisões ditas impopulares, ao mesmo tempo em que transfere para a Corte o espaço dessas deliberações. Muitos temas sensíveis à sociedade não são decididos pelo parlamento – foro primeiro dessas discussões – por uma própria escolha do Legislativo em não tomar a decisão e, consequentemente, se indispor com base da sociedade.

É pela somatória desses três fatores – judicialização da política, ativismo judicial e silêncio eloquente do Congresso – que o Supremo Tribunal Federal nos últimos anos foi a principal arma de conquista de direitos por parte dos grupos vulneráveis. Foi o STF que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que garantiu as cotas nas universidades e na administração pública, que reconheceu a legitimidade do aborto em caso de anencefalia, que reconheceu a necessidade de equiparar a homofobia ao racismo, entre vários outros exemplos. Nesse sentido, grupos vulneráveis, insuficientemente representados no Congresso Nacional, o qual opta por não tomar uma decisão impopular, acaba provocando o STF para que decida sobre aquele tema.

Parece, portanto, inegável que o STF é um ator que cada vez mais ganha os holofotes do cenário político do país, de certa forma, acaba catalisando e potencializando o discurso político que permeia a sociedade. É justamente por isso que se é um ator político, como ator político se porta, de modo a se tornar refém da política rasteira ou, vamos assim dizer, da politicagem. Se está mais exposto, mais propenso está a ser apedrejado.

É certo que o Supremo vem sendo constantemente atacado por grupos políticos. Críticas às decisões do STF sempre aconteceram, mas atualmente elas se intensificaram e deixaram de ser institucionais, passando o ataque às pessoas dos ministros e até mesmo questionando a necessidade da instituição – o que tem um caráter abertamente antidemocrático e criminoso. A lógica dessa orquestração de ataques às instituições democráticas é relativamente simples e conhecida na história, sobretudo por líderes populistas: propõe-se um discurso flagrantemente inconstitucional a um grupo de apoiadores, o que é suficiente para inflamar a sua base eleitoral. Posteriormente, essa decisão é revertida nas instituições democráticas e àquela base eleitoral outrora inflamada, adota-se o discurso de que o Supremo que não deixa o governante fazer aquilo que o povo anseia. Pronto! Tem-se uma base inflamada, uma polarização acentuada e um inimigo que impede o líder carismático (na acepção weberiana do termo, não no sentido de simpatia) de trabalhar pelo bem do povo. Ou seja, o objetivo político de polarização foi conquistado ao mesmo tempo em que se isenta o governante de qualquer forma de responsabilidade, pois ela foi transferida ao Supremo.

Embora relativamente conhecida a estratégia populista, ela é perigosa e, de certa forma, uma armadilha. Caso o Supremo entre na onda e – como ator político – revide às provocações com a mesma intensidade, tem-se um palco perfeito para a desestabilização institucional, uma vez que a base política já está inflamada. Com isso, a democracia, já em risco e constantemente atacada e maltrapilha, poderia sangrar ainda mais.

Embora o Supremo seja visto como um ator político, deve ser considerado e se portar como ator de Estado, não cedendo às constantes provocações e ataques dos atores de governo. Enquanto ator político de Estado, guardião da Constituição, deve o Supremo velar pela nossa democracia, pelos direitos das minorias e pela serenidade das instituições.

Como os ministros do Supremo não são eleitos, retiram a sua legitimidade democrática justamente da Constituição, não da vontade do povo como acontece com os membros do Legislativo e do Executivo. Portanto, uma decisão legítima é aquela que está ancorada na Constituição, ainda que frustre boa parte da população. A democracia, vale dizer, não se restringe à somatória das vontades individuais. A democracia deve ser imaginada como uma balança em que se tem de um lado a vontade do povo e, do outro lado, o respeito à Constituição. Portanto, a democracia é o equilíbrio entre a vontade da população e o respeito à Constituição. Não existe democracia se não houver respeito à Constituição.

Enquanto documento político que sustenta as instituições, organiza o Estado e protege os direitos fundamentais, a Constituição admite interpretações diferentes, mas não absurdas. As expressões constitucional/inconstitucional não devem ser banalizadas a uma figura de linguagem da politicagem que apenas legitima um discurso ideológico. A lógica é oposta: o discurso político que deve se adequar à Constituição.

Decisões podem e devem ser criticadas. Todavia, enquanto ator político de Estado e guardião da Constituição, a crítica ao STF deve se limitar às decisões. E essa limitação se dá também em relação às demais instituições, até mesmo as decisões do presidente são constantemente criticadas, mas não se fala, e com acerto, em “acabar com a Presidência”.

É claro que há erros e excessos em decisões do Supremo. Nenhuma, no entanto, que passe perto de se cogitar o seu fechamento ou questionar a sua autoridade. Que se critiquem as decisões, mas se preservem as instituições e a democracia. Governos passam, a Constituição permanece.

Ruan Espíndola

 

Nota do colunista: Agradeço ao Professor Ruan Espíndola pela brilhante colaboração. Na próxima semana continuaremos com algum tema correlato. Até lá!

1 Comentário

  1. Robson Oliveira Aguiar disse:

    Parabéns ao professor Ruan por trazer um tema tão atual e polêmico de forma serena, numa linguagem didática de fácil compreensão, esclarecendo a luz do conhecimento a atuação é importância do STF na manutenção da democracia atualmente tão atacada em razão da polarização política que vivenciamos.

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