Vieram duas prostitutas apresentar-se ao rei. Uma delas disse:
– Ouve, meu senhor. Esta mulher e eu habitamos na mesma casa e eu dei à luz junto dela, no mesmo aposento. Três dias depois, deu também ela à luz. Ora, nós vivemos juntas e não havia nenhum estranho conosco nessa casa, pois somente nós duas estávamos ali. Durante a noite morreu o filho dessa mulher, porque o abafou enquanto dormia. Levantou-se ela então, no meio da noite e enquanto a tua serva dormia, tomou o meu filho que estava junto de mim e o deitou em seu seio, deixando no meu o seu filho morto. Quando me levantei pela manhã para amamentar o meu filho, encontrei-o morto; mas, examinando-o atentamente, verifiquei que não era o filho que eu dera à luz.
– É mentira! – replicou a outra mulher -, o que está vivo é meu filho; o teu é que morreu.
A primeira contestou:
– Não é assim; o teu filho é o que morreu, o que está vivo é o meu.
E assim disputavam diante do rei.
O rei disse então:
– Tu dizes: é o meu filho que está vivo e o teu é o que morreu; e tu replicas: não é assim; é o teu filho que morreu e o meu é o que está vivo. Vejamos, continuou o rei; trazei-me uma espada.
Trouxeram ao rei uma espada.
– Cortai pelo meio o menino vivo, disse ele e dai metade a uma e metade à outra.
Mas a mulher, mãe do filho vivo, sentiu suas entranhas enternecerem-se e disse ao rei:
– Rogo-te, meu senhor, que dês a ela o menino vivo, não o mateis.
A outra, porém, dizia:
– Ele não será nem teu, nem meu; seja dividido.
Então, o rei pronunciou o seu julgamento.
– Dai, disse ele, o menino vivo a essa mulher; não o mateis, pois é ela a sua mãe.
Toda Israel, ouvindo o julgamento pronunciado pelo rei, encheu-se de respeito por ele, pois se via que o inspirava a sabedoria divina para fazer justiça.
A famosíssima Sentença do Rei Salomão pode ser analisada sob três aspectos principais:
1º) – O da grande sabedoria com que o Rei Salomão foi presenteado por Deus, permitindo-se-lhe que discernisse de forma correta acerca dos problemas vividos por seu povo de Israel.
2º) – O da aplicação e consequente distribuição da Justiça, feita de uma forma imediata e igual, tal qual Deus havia determinado ao Rei que o fizesse.
3º) – O do conflito particular, surgido entre as duas mulheres prostitutas, que disputavam como filho uma criança viva, nascida quase simultaneamente à que morrera.
Nessa disputa, chegou-se a um impasse aparentemente insolúvel, quando ambas proclamaram-se mãe, não restando ao Rei Salomão alternativa que não a de dividir ao meio a criança.
Mas, será mesmo que o Rei Salomão não tinha outra solução? Creio que tinha, sim, impregnado que estava da Sabedoria Divina. Se a mãe verdadeira não se mostrasse através do sublime gesto de renúncia, motivado pelo amor profundo ao filho sob risco de morte, preferindo vê-lo entregue à sua rival, o Rei Salomão certamente haveria de tirar a criança daquelas duas mulheres, eis que nenhuma delas ter-se-ia mostrado digna de tê-la consigo.
Pois, o amor maternal sobrepõe-se a tudo. Afinal, somente a mãe plena e verdadeira não pode mesmo resistir ao amor desprendido que sente em seu coração pelo filho e somente ela é capaz de abrir mão de tudo por esse amor e pela felicidade do ser que gerou e ao qual deu a luz.
Teria surgido, então, o instituto da adoção, a colocação de criança carente em lar (ou família) substituto, precedendo de muitos séculos o Direito Romano, que nos inspira até os dias atuais.
Mas, sinto que é uma questão remanesce, sendo relevante esmiuçar a respeito: de onde é que provinha aquela incontestável sabedoria do Rei Salomão, capacitando-o a discernir com acerto, precisão e firmeza, mesmo sob forte pressão e perante seus súditos reunidos e certamente ansiosos e críticos para descobrirem quem de fato era o seu novo rei?
Diz-nos a Bíblia em Reis, Capítulo 3, Versículos 5/15:
Em Gabaon, o Sequer apareceu a Salomão, num sonho noturno, e lhe disse: “Pede o que desejas e eu to darei”. Salomão respondeu: “Tu mostraste grande benevolência para com teu servo Davi, meu pai, porque ele andou na tua presença com fidelidade, justiça e retidão para contigo. Tu lhe conservaste essa grande benevolência e lhe deste um filho para se sentar no seu trono, como é o caso hoje. Agora, Senhor, meu Deus, fizeste reinar o teu servo em lugar de Davi, meu pai. Mas eu não passo de um adolescente, que não sabe ainda como governar. Teu servo está no meio do teu povo eleito, povo tão numeroso que não se pode contar ou calcular. Dá, pois, a teu servo uma correção obediente, capaz de governar teu povo e de discernir entre o bem e o mal. Do contrário quem poderá governar este teu povo tão numeroso?”
Este pedido de Salomão agradou ao Senhor. Deus disse a Salomão:
“ Já que pediste estes dons e não pediste para ti longos anos de vida, nem a riqueza, nem a morte de teus inimigos, mas sim sabedoria para praticar a Justiça, vou satisfazer o teu pedido. Dou-te um coração sábio e inteligente, de modo que não houve teu igual antes de ti, nem haverá depois de ti. E dou-te também o que não pediste as riquezas e a glória, de tal modo que não haverá teu igual entre os reis durante toda a tua vida. E se andares nos meus caminhos e observares os meus preceitos, a exemplo de Davi, teu pai, eu te darei uma longa vida.”
Então Salomão despertou e compreendeu que era um sonho.
Para aquele que crê ou que tem um ideal a concretizar, existe a certeza inarredável de que Deus somente dá ao ser humano aquilo de que ele precisa e não aquilo que ele pede e quer. Ademais, há pedidos inconvenientes e impossíveis, que não são suscetíveis de apropriação pelo ser humano eis que contrariam as próprias leis divinas, que são soberanas, imutáveis e irrevogáveis.
Salomão julgou bem: foi moderado, razoável, sensato e rápido. Não desdenhou a condição das duas mulheres e nem subestimou os riscos que pairavam sobre a criança. Como juiz, foi digno, sério, transparente e firme.
Assim também deveriam ser todos os julgadores de hoje, para que a Justiça verdadeira não seja mais cega, surda e muda e para que ela, a Justiça, temperada pela equidade, possa tratar desigualmente os desiguais, dando à mulher, por exemplo, um tratamento condizente e decente, não privilegiando um gênero à custa de outro, punindo exemplarmente os feminicídios e protegendo minimamente a maternidade, a infância, a juventude e a velhice.
Por isso, devemos ter sempre em mente:
– Justitia semper; Jus seper!
– (Justiça, sempre; Direito, às vezes!)
Que bom seria se assim fosse!
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